Por Fabrício Brandão

Por Fabrício Brandão

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

A função social da escola

Em uma primeira análise pode-se dizer que a escola reflete um processo sócio-cultural e tem a função de transmitir os conhecimentos e os modelos de comportamento que justificam uma determinada estrutura social. Ela transmite idéias, valores e o saber acumulado pela sociedade ao longo da história. É fundamental que fique claro que esta transmissão não ocorre desvinculada da política e da economia. A sociedade, ao desenvolver-se sobre estas bases, necessita que sua estrutura seja reproduzida e perpetuada valendo-se da escola como fonte desta reprodução. Entretanto, para compreender qual é a função social da escola, é necessário conhecer em que contexto desenvolveram-se as relações humanas e quais são as bases políticas e econômicas que as fundamentaram.

No Brasil, a educação desenvolveu-se sobre as bases do capitalismo, que impôs nela seus traços essenciais criando um sistema escolar que parte da idéia classista de sociedade, que é típica deste modelo econômico. Partindo dele, a escola estrutura-se de maneira dual: uma que serve à elite e outra que serve aos trabalhadores. Todavia, a educação que se produz nas duas não têm interesses diferentes, têm somente um: formar uma elite que conhece a lógica que regula a sociedade para que ela, a elite, possa manter-se no poder. Para os trabalhadores destina-se uma educação elementar, básica e de baixa qualidade.

Segundo as idéias de Arroyo, a sociedade capitalista criou um sistema de ensino marcado por interesses de classe e não foi estruturado para servir aos trabalhadores, “(...) para os filhos das camadas médias e das elites se destinou um sistema de ensino que prepara para as artes, as letras, o saber superior; enquanto que para os filhos das camadas populares, se destinou um sistema paralelo de moralização elementar, de educação integral básica (pouca ensino), que vinculava, para a integração social, o trabalho e a produção, para os trabalhadores manuais e os cidadãos marginalizados”. (ARROYO, 1997, p. 37)

Nesses termos, a escola, que poderia ser um espaço da fermentação da transformação social, não o é. Ela acaba por reproduzir o “status quo”, refletindo os interesses da camada dominante. Ela “cria” o homem que a sociedade classista deseja criar: um homem individualista e bem adaptado à competitividade. Mais ainda, forma o homem apenas para servir ao mercado de trabalho, que vai selecionar aqueles que se converteram nos melhores dentro de um sistema educacional excludente que não concede a todos as mesmas oportunidades. Desta forma, “se desaprova a escola por ser ao mesmo tempo inadaptada à sociedade e demasiadamente bem adaptada a uma sociedade injusta”. (CHARLOT, 1983, p. 150)

Sendo assim, no desenvolvimento do processo educativo, é necessário que os educadores se façam as seguintes perguntas:

Para que educar?
Para que ensinar?

A resposta a estas duas questões pode contribuir para se chegar até o verdadeiro sentido da escola hoje em dia, porque o significado que tem estas duas vertentes dentro do contexto educativo não é o mesmo. Ao educar se está cumprindo com uma etapa do processo educativo, que exige o desenvolvimento de valores, sentimentos e atitudes. Ao ensinar cumpri-se com outra. Aquela que se incumbe de instruir e aproximar os estudantes dos conhecimentos produzidos socialmente. Entretanto, as duas são fundamentais e se transformam no verdadeiro fim da educação e logicamente, da escola.

Se por um lado não é possível formar uma sociedade de bem instruídos sem que ela desenvolva valores, sentimentos e atitudes coletivas com seus semelhantes, nem formar um homem que não tenha uma convivência mais solidária e justa com os seus pares; por outro, não é possível deixar de aproximar essa mesma sociedade dos conhecimentos científicos que são socialmente importantes e que podem ajudá-la em seu processo de emancipação, concedendo-lhe condições para analisar criticamente a realidade com o intuito de transformá-la. Ao deixar de cumprir com um desses papéis a escola estará oprimindo e não contribuindo para a libertação dos homens.

Então, a escola terá uma função muito mais relevante: preparar o homem para a vida. Se hoje, nos moldes do capitalismo, se exige um homem capacitado e que tenha conhecimentos mais amplos sobre o processo produtivo, a escola tem que formá-lo. Todavia, os espaços de conhecimento têm que ser dinamizados para que o homem atue com uma visão mais crítica, questionadora e criativa frente à realidade. Ela tem que formar um homem preparado para entender e enfrentar a dinâmica social excludente e opressora que configura-se dentro desse mesmo modelo, sem perder de vista a atuação coletiva que deve estruturar-se na solidariedade e na cooperação. Portanto, “é preciso transformar a vida da classe e da escola, de modo que se possam vivenciar práticas sociais e intercâmbios acadêmicos, que levem à solidariedade, à colaboração, à experimentação compartilhada, assim como a outro tipo de relações com o conhecimento e a cultura, que estimulem a busca, a comparação, a crítica, a iniciativa e a criação”. (SACRISTÁN y GÓMEZ, 2000, p. 26)

Não é possível legitimar uma escola que desvincule a produção do conhecimento da vida cotidiana dos educandos, ao mesmo tempo que não é possível conviver com uma escola que não os prepare para desempenhar seu papel na luta de classes. Se a sociedade classista se estrutura de maneira desigual e estabelece uma tensão entre os grupos que a compõem, a escola, sem dúvida, vai refletir essas tensões, pois a educação é determinada pelas realidades sociais. A escola deve partir delas para ter um caráter libertador. Precisamente, ela deve partir da realidade social em que encontra-se o educando para que ele saiba qual é o seu papel dentro do meio social e conheça a estrutura de dominação e os interesses a que está submetido. Partir da realidade social dos educandos é dar um passo mais além desta estrutura opressora, excludente e marginalizadora, na qual ele se encontra. Mais ainda, se o modo de vida do homem está vinculado ao seu papel social e ao lugar que ele ocupa na sociedade, a escola deve trabalhar para ampliar a sua capacidade de análise e crítica, para que ele possa, a partir de sua vivência, mudar esta situação. Ela deve, de acordo com Hugo Assman, desenvolver vivências personalizadas de aprendizagem.

A escola, como uma instituição social emancipatória, deve proporcionar aos estudantes o acesso incondicional ao saber, para que este se transforme na ferramenta fundamental da mudança. Entretanto, ele não pode ser apresentado de maneira isolada da realidade social, pelo contrário, deve ser apresentado como saber que foi produzido pelos homens e que pode, por isso, servir a sua emancipação.

Partindo deste caráter, a escola deve:

“(...) Preparar os estudantes para desempenhar seu papel na luta de classes;
Prepará-los para a cooperação e o conflito;
Dar-lhes uma formação científica e técnica de alto nível;
Denunciar o mito da igualdade de oportunidades;
Ajudar-lhes a refletir sobre as necessidades sociais prioritárias;
Esforçar-se por transformar as relações sociais, sabendo que as transformações são
limitadas pela base econômica.” (CHARLOT, 1983, p. 243)

Qualquer pretensão educativa que não esteja vinculada a esta realidade terá um caráter mistificador, estará servindo aos interesses das elites, que têm somente um objetivo: exercer sua dominação sobre as massas para que possam reproduzir-se como classe dominante opressora. É função da escola, desmascarar esta ideologia classista que submete os trabalhadores a todo tipo de exploração e alienação.

Ter em conta que a ideologia está presente na estruturação da sociedade e que, portanto, forma parte da realidade escolar, é uma questão essencialmente importante para que no espaço educativo se criem condições para se divulgar uma contra-ideologia, ou seja, para se questionar o “status quo” e as verdades que são divulgadas como universais e que muitas vezes têm um caráter classista, ao representar os interesses da classe social dominante.

O que se pode entender por ideologia?

Ao dizer de Maria Lúcia de Arruda Aranha, “a ideologia é o conjunto de representações e idéias, assim como as normas de conduta, pelo meio das quais o homem é levado a pensar, sentir e atuar de uma determinada maneira, considerada por ele correta e natural”. (ARANHA, 1996, p. 31)

De acordo com Henry A. Giroux, citado por Maclaren, “(...) a ideologia se refere à produção de sentidos e significados. Pode descrever-se como uma forma de ver o mundo, um complexo de idéias, diferentes tipos de práticas sociais, rituais e representações que tendemos a aceitar tanto como naturais, como de sentido comum.” (MACLAREN, 1994, p. 90)

O homem submetido ao domínio ideológico não realiza por ele mesmo a análise crítica que deveria desenvolver sobre o seu quefazer, incorporando sem a reflexão tão necessária as verdades capitalistas que são tidas como universais e pertinentes a todas as classes sociais sem distinção. Daí que, o homem-trabalhador vê-se alienado, abandonando o centro de si mesmo. Ele não se vê como produtor daquilo que ele mesmo realiza. É uma verdade que a escola não é a fonte da ideologia e da alienação, entretanto, acaba contribuindo para divulgá-la, pois não contribui para desenvolver o pensamento crítico-reflexivo e se mantêm como um centro reprodutor das idéias que somente servem para manter o “status quo”.

Analisando os fundamentos de Bernard Charlot, conclui-se que a escola têm um caráter ideológico porque contribui para a eliminação da significação social da educação em proveito da cultura, subordinando as realidades sociais à educação cultural. A escola justifica também a desigualdade social pelas diferenças naturais entre as pessoas, o que caracteriza uma forma de atuação ideológica.

A escola, como um centro de libertação dos homens, deveria romper com esta estrutura mistificadora e alienante ao divulgar os verdadeiros interesses da elite que, para manter-se no poder, necessita oprimir e explorar os trabalhadores em um sistema que se auto-determina democrático ao privilegiar a liberdade individual e a livre escolha.

A escola tem que romper com esta estrutura e possibilitar que os trabalhadores atuem criticamente na procura pela minimização da desigualdade social. De acordo com Sacristán y Gómez, ela deve “organizar o desenvolvimento radical da função compensatória das desigualdades de origem, mediante a atenção e o respeito pela diversidade; preparar os alunos para pensar criticamente y atuar democraticamente em uma sociedade que não é democrática”. (SACRISTÁN y GÓMEZ, 2000, p. 22)

Esta é uma realidade: ou a escola transforma-se em um agente da transformação social ou vai perpetuar sempre a estrutura capitalista, que é desigual e não emancipatória. Ela não cumprirá, portanto, com uma de suas principais funções: ser um espaço para a prática da liberdade.

Referências Bibliográficas

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CHARLOT, Bernard. A Mistificação Pedagógica: Realidades Sociais e Processos Ideológicos na Teoria da Educação. Zahar. Rio de Janeiro. 1983. 2ª ed. 314p.
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SACRISTÁN, Gimeno e GOMÉS, Pérez. Compreender e Transformar o Ensino. ARTMED, Porto Alegre. 2000.

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