Por Fabrício Brandão

Por Fabrício Brandão

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

FUTURO DO PRETÉRITO

Posto aqui um poema escrito pelo meu grande amigo, Nonato Mendes Neto, em seu livro "A Gosto do Acaso". Ótima literatura escrita com talento e sensibilidade.


"Virias hoje para me ver,
mas tinhas que andar entre filósofos
e plantar a semente da indagação.
Era preciso inspirar poetas de aldeias distantes
para torná-los célebres depois de mortos.
  
       Tenho sonhado tanto e esquecido mais.
       Superfícies pautadas em branco é o que há,
       e reis que não se sagram,
       castelos que não se erguem,
       solos que não se cultivam,
       pães que não se preparam,
       romãs que não se colhem,
       cores que não se miram,
       alaúdes que não se tocam,
       rimas que não se concebem,
       cantigas que não se entoam,
       salmos que não se escrevem,
       verbos que não se despertam...
       Latim que não se traduz. 

      E eu impedido de fabricar girassóis.

Se ao menos passasses por aqui.
Se estalasses o dedo ou me lançasses um olhar,
mesmo mais rápido que a luz,
já haveria astros sobre a minha cabeça,
e eu poderia povoar o mundo de luas e sóis.  

Eu falaria do homem no arranha-céu,
a assinar papéis e a devorar cigarros.
Mas eu falaria mais da sua vontade
de atirar-se do centésimo primeiro andar
e de parar o trânsito da segunda-feira,
para se tornar manchete nos jornais,
o comentário do dia nas repartições públicas,
quem sabe inspirar uma crônica ou poema
e virar literatura.

Eu falaria do homem seu irmão,
que tem uma dúzia de filhos,
e da mulher que os preparou,
do nome dele num deles,
dos bichos que criam em terras
que não figuram nos mapas,
da casa de pau-a-pique e barro branco
com terreiro de galinhas e varais
em que se agitam panos e remendos,
das estrelas que contam à noite
num céu pralém do sem rumo,
do rádio de pilhas que chia
e não traz notícias da civilização.

Eu falaria de José e de Maria
e da poesia em seus batismos,
da colcha de retalhos dela
e do seu sonho de ser modista.

Do quando raro em que a peleja intervala
e surgem desenhos a carvão na parede do paiol.
É dele o desejo de transformar listras em letras
e de dizer-se sem voz.
Eu os tornaria imperadores
de uma província sem súditos.

Eu buscaria no limbo as almas dos meninos
que morrem sem sacramento.
Reverteria anjos em moleques
para que empinassem papagaios,
bebessem chuva, roubassem mangas,
carambolas e frutas-do-conde.
Para que caçassem vaga-lumes
e dormissem sem rezar o terço
(ainda assim sonhariam com Deus).
Eu afrontaria ampulhetas de pós tão escorregadios
e açoitaria andaços que interrompem destinos.

Eu falaria de meninas imaculadas,
que sonham com príncipes em cavalos brancos
e mutilam bonecas à meia noite,
das orações entrecortadas de suspiros,
das tranças desfeitas e das alças pendidas,
dos sonhos que fazem corar.
Eu falaria de benzedeiras que afastam quebrantos,
de bruxas em casebres, cozendo ervas num caldeirão
para salvar filhos de lavadeiras com ventre virado,
cortando galhos de sapé para retirar impingem
e rezando coisas (que eu não ousaria decifrar),
sem medo de inquisições.

Eu colocaria em pauta o que está sob lençóis,
até mesmo o que eu não pudesse apreciar
e talvez fosse profano e quiçá chocasse
e trincasse santos no altar.
Ah! As coisas insondáveis que eu revelaria,
as cartas de amor não enviadas
(ridículas e eróticas)
ardendo em gavetas de fundo falso,
a ponto de desfazer papiros.

Se ao menos passasses por aqui.
Se estalasses o dedo ou me lançasses um olhar,
mesmo mais rápido que a luz,
eu dizimaria o silêncio,
faria ruir o que é claustro.
E, se ficasses um minuto mais,
dançaria contigo uma valsa qualquer
sobre os escombros."

NETO, José Nonato Mendes. A gosto do acaso. Belo Horizonte: Cuatiara, 2002.

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